Vejo-me compelido a voltar ao caso dos “túneis nazistas” de Ibirubá. O tema é problemático por si só. Vou dizer por que. Algum tempo atrás, recebi telefonemas e e-mails relatando que o respeitado filósofo Roberto Romano, da UNICAMP, havia declarado ao Globo News que o Rio Grande do Sul está abarrotado de “neonazistas”. Fiz contato com ele; não negou a declaração, dizendo que ela se baseava em informações colhidas num órgão de divulgação de um Instituto Humanitas, de uma grande universidade cristã gaúcha. Este instituto congrega cristãos “progressistas”, possivelmente simpáticos à Teologia da Libertação, e parecia óbvio que enxergasse como sua obrigação denunciar essa maldade chamada “neonazismo”. Perfeito. Os integrantes do instituo, porém, não se deram conta de que, com sua manifestação, estavam colocando no mundo um enorme potencial de instigação ao ódio étnico-racial – em seu bem intencionado e meritório élan de combater preconceitos, estes haviam entrado pela porta dos fundos.

Simetricamente, causa estranheza que autoridades possam estar pensando na possibilidade de explorar “túneis nazistas” (na hipótese de que realmente existissem) como potencial turístico de um município. No caso concreto de Ibirubá, esta situação inclusive levou a um gasto, pois quando se notou que se dera com os burros na água com uma perfuração espalhafatosa que não revelou outra coisa que dinheiro público enterrado no chão, sem qualquer serventia (a tal da canalização sem uso, construída algumas décadas atrás), o buraco foi, mais que depressa, tapado por uma retroescavadeira da prefeitura.

Não se pode negar a alguém o direito de tentar conquistar alguns minutos de fama, espalhando hipóteses sobre coisas exóticas. Mas, mesmo neste caso, pode-se exigir um mínimo de conhecimento de causa. Divulgar que Martin Bormann, famigerado auxiliar de Adolf Hitler, esteve em Ibirubá afronta um posicionamento oficial da então República Federal Alemã, que, em 1973, informou que ele, comprovadamente, morreu em 1945, declaração que foi aceita pelo mais conhecido caçador de nazistas, Simon Wiesenthal. Por tudo isso, a alaúza em torno dos “túneis nazistas” de Ibirubá é questionável por si só.

Mas não vou aprofundar o caso como tal, concentrando-me, exclusivamente, numa repercussão, quando, semanas depois da agitação, em outubro de 2019, apareceu uma pessoa com declarações fantásticas, numa rádio local. A palavra “fantástico” realmente vale, pois chegou a impressionar gente muito bem formada e informada. E este é o motivo das breves considerações que seguem.

            A entrevista pode ser vista e ouvida pelo link https://www.youtube.com/watch?v=gNoSHKjWnwg. Trata-se de pessoa com nome e idade declarados de Leonilda, com 67 anos. A entrevista dura 80 minutos, e realmente impressiona. Não tenho treino técnico para analisar palavras, gestos, expressões faciais. Minha capacidade de opinar se restringe, portanto, a alguns aspectos do conteúdo. São considerações derivadas do bom-senso mínimo mediano. O conteúdo é macabro, referindo a existência de túneis extensos, e a matança sistemática de pessoas.

Quais são os principais questionamentos que a situação sugere? Objetivamente, a senhora em questão deve ter nascido em 1952, já que está com 67. Declarou que assistiu aos fatos que relata entre os 6 e os 9 anos, portanto entre 1958 e 1960 (claro, com pequenas possibilidades de deslocamento cronológico). Isto significa: durante o governo de Juscelino Kubistchek como presidente do Brasil e Leonel Brizola como governador do Rio Grande do Sul. Ela declara que não tem conhecimento sobre suas origens, mas sabe que está com 67 anos. De onde sabe isso, se não sabe quem foram seus pais?

Declara que foi criada por uma família de alemães no interior de Tenente Portela, a qual teria produzido “mantimentos” para a ação macabra em Ibirubá, e os levava regularmente para lá, de “jardineira” (um tipo de carroça, com algum conforto). Mas, em nenhum momento esclarece que “mantimentos” eram esses, só diz que estavam acondicionados em “sacos” e “sestas”. A própria imprensa de Ibirubá esclarece que a distância entre a cidade e Tenente Portela é de 239 km. Na época, nenhum único quilômetro deste percurso estava asfaltado. Ao contrário de carruagens passando em alta velocidade em cenas de filmes, de fato não se pode esperar das “jardineiras” de que fala a senhora que andassem a mais de 20 km/h. Isso significa que o trajeto deve ter demorado, no mínimo (!), 12 (!) horas - e olha que, num percurso longo desses, há necessidade de parar para descansar os cavalos. De sã consciência, a pergunta que não cala é: que “mantimentos” inexistentes em Ibirubá e arredores poderiam ter sido produzidos no tão distante município de Tenente Portela, e que fossem fundamentais para garantir a obra macabra lá em Ibirubá?

Os túneis teriam sido enormes, inclusive ela afirma que deve ter havido um que ia até Panambi (100 km!!!). A pergunta que se impõe é onde estão esses túneis? Se é plausível que a terra retirada tenha sido ensacada e disfarçadamente levada a uma olaria, como poderia ter acontecido o fechamento? Se não tivessem sido fechados, deveriam ter sido detectados pelos aparelhos dos técnicos da UFRGS, que descobriram a canalização sem serventia construída não muito depois. Alguém, de sã consciência, acredita que em algum lugar da longa distância entre Ibirubá e Panambi o túnel não teria desmoronado, durante os últimos 60 anos?

A história do frigorífico. A depoente duvida da utilização do prédio visto como tal para este fim. Na verdade, teria sido um lugar de “carnear” seres humanos. Ela chega a comparar o lugar a Auschwitz, com a matança permanente e sistemática de gente. Mais uma vez, de sã consciência: alguém pode acreditar que numa pequena cidade como Ibirubá possa ter existido, num período democrático, um “frigorífico” cuja caldeira não servia para matar porcos, mas para eliminar seres humanos, em massa? Se ela frequentou o lugar durante 3 anos, isto são mais de 1.000 dias, e se a carnificina era diária e maciça – ela fala de gritos coletivos (!), teriam sido mortas ali muito mais de mil pessoas. O documento “Brasil: nunca mais” registra em torno de 1.000 vítimas do regime militar brasileiro, e a lista inclui não só mortos, mas também “apenas” torturados. De sã consciência, dá para acreditar que a carnificina patrocinada por nazistas do pós-guerra num lugarzinho como Ibirubá foi muito mais feroz que no regime militar brasileiro, em todo o território nacional? Mais: quem eram os sacrificados? Ninguém nunca viu ou ouviu nada? Repito, o período é de democracia. De onde vinham os sacrificados? Como eram trazidos? Há algum registro de desparecimento de pessoas, na época, seja na região, seja fora dela?

Outra ponderação: os fatos teriam acontecido entre 13 e 15 anos após o final da guerra. Que situação especial os nazistas fugidos estariam vivendo naquele momento, para desencadear um projeto-monstro desses, num lugarejo no interior do Rio Grande do Sul? Quase ao final da guerra ou no imediato pós-guerra, seria plausível imaginar que estivessem sendo preparados abrigos ou caminhos de fuga para os nazistas recém derrotados - mas mais de 10 anos depois? Plausível (repito: plausível), é a história de um nazista errante, fugitivo, debilitado, que teria aparecido em Ibirubá à procura de morfina. Mas a história contada por esta senhora não tem nada de plausível!

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Estes são apenas alguns dos questionamentos que a entrevista de Leonilda sugere a quem se preocupa com as consequências danosas que o sensacionalismo jornalístico pode produzir. Repito: não tenho competência técnica para uma avaliação da apresentação da entrevistada, muito menos da pessoa em si. Confesso que seu jeito de falar impressiona. A aparência é de uma pessoa normal. Há momentos de descontração, momentos de tensão, de emoção. Não tenho como indicar anormalidades. Mesmo assim, gostaria de deixar aos leitores a indicação de que existem casos de depoimentos levados a sério por especialistas sobre coisas tão macabras quanto o Holocausto que, mais tarde, foram comprovados como falsos. Talvez o caso mais conhecido seja o de Binjamin Wilkomirski. Repito: não estou afirmando que o caso Leonilda seja igual, mas como traduzi um artigo a respeito, aproveito a oportunidade para dispor o texto sobre Wilkomirski aos leitores (para ver, clicar aqui). [10/2/2020]