Creio que a primeira vez em que usei a expressão “imprensa de latrina” foi na nota “A estagiária nazista”. Ali, inclusive, refleti sobre meu drama pessoal - como infartado -, por ter de defender, com unhas e dentes, na qualidade de democrata, a liberdade total de imprensa, a qual, no entanto, em sua incomensurável irresponsabilidade, não para de produzir excrementos.

 

Agora, a coisa se repete num noticioso televisivo nacional de começo de noite em uma grande empresa jornalística. Entre 6 e 9 de junho de 2018, o “Jornal da Band[eirantes]” apresentou uma série sobre “Marcas do nazismo”, enfocando o caso de um aterro no Canal do Linguado, em São Francisco do Sul, SC – os âncoras do programa fizeram pose para anunciar a “brilhante” série. Ali, foi iniciado, segundo o próprio texto da matéria, em 1933, o aterramento de um braço de mar, sobre o qual havia, originalmente, uma ponte, para dar passagem a uma outra ligação física, uma estrada. Desde o início deste ano, vários órgãos de imprensa têm noticiado a existência de uma movimentação para exigir uma indenização, por crimes ambientais “de guerra”, à Alemanha, porque ela seria a responsável por esse aterramento, o qual teria causado enormes estragos ambientais à região, tanto econômicos quanto de saúde pública.

 

Devo antecipar - com toda ênfase! - que não tenho qualquer competência técnica para avaliar a veracidade das afirmações referentes aos estragos ambientais. Parecem plausíveis. Claro, como leigo, tenho a impressão de que eles se acentuaram, de forma drástica, num passado mais recente, pois pessoas aparentando ter entre 30 e 40 anos afirmam que, não muito tempo atrás, a área agora assoreada estava amplamente habitada por peixes e outros seres vivos, de forma que a “poluição” mais recente potencializou os problemas. Mas, não tenho como criticar a Rede Bandeirantes por abordar o problema ecológico da região. No entanto, aquilo que é abominável na série de reportagens é a forma da vinculação da situação ao nazismo, e que justificaria a demanda por indenização por crime ambiental “de guerra”. Não tenho qualquer compromisso com a Alemanha, não sou cidadão alemão, mas tenho responsabilidades como historiador, e isso inclui fatos sobre a presença nazista no Brasil.

 

Fico pasmo como a direção da emissora admite, num noticioso seu, um repórter fazer afirmações do seguinte calibre: “em 1933 [!!!], ... às vésperas da Segunda Guerra Mundial”. Esse repórter parece nunca ter ouvido falar em cronologia, durante seu curso de jornalismo. A estrada teria sido construída a mando da Alemanha para transportar armamentos (de onde para onde, ninguém sabe!) – e isso em 1 9 3 3! Pela idade, deduz-se que o repórter não deve ter feito o ginásio nem estudado latim, motivo pelo qual não deve ter a mais mínima ideia daquilo que é uma consecutio temporum. Mas tenho certeza de que em qualquer escola mediana deste país, algum professor explica, durante o primeiro grau, que um fato "A" não pode ser pressuposto como causado por um fato "B", se este último é posterior ao primeiro. No presente caso, em 1933, os nazistas recém tinham chegado ao poder, estavam gastando suas energias para mantê-lo, apenas embrionariamente poderiam pensar em estratégias para se rearmar, construir submarinos, estabelecer pontos estratégicos em lugares importantes (na Europa) - ainda não havia navios nem submarinos para desembarcar num fim de mundo lá na América do Sul, em São Francisco, nem a indústria bélica estava aparelhada para mandar armas em massa para os "alemãos" de Blumenau, a fim de "apunhalarem o Brasil pelas costas". Para chegar a essa conclusão, não precisa de conhecimentos históricos, pois se trata de um imperativo de lógica!

 

Para quem está infartado, a coisa piora quando assiste às reportagens, pois essa meleca é endossada por docentes da USP e de algumas outras universidades menos votadas deste país! Aguenta, coração!

 

Afastado por mais de uma semana do mundo civilizado, sem acesso à internet, resolvi rever as reportagens, para, eventualmente, reavaliar aquilo que escrevi acima. Continuo pasmo como uma empresa jornalística do porte da Bandeirantes teve coragem de derramar sobre a opinião pública brasileira, através de um instrumento que é uma concessão pública, uma matéria de tal inconsistência histórica quanto ali está. Repito, com o máximo de ênfase possível, aqui não está em discussão o problema ecológico de São Francisco do Sul, está em jogo a qualidade abaixo de qualquer crítica da tentativa de vincular esse problema a uma ação nazista. No conjunto das matérias publicadas, não é apresentado um único indício - muito menos QUALQUER prova! E as banalidades sobre o bom relacionamento de Getúlio Vargas com Hitler só poderiam ser apresentadas como novidade por uma pessoa de formação realmente muito precária sobre a matéria histórica em relação à qual pretendeu esclarecer o povo brasileiro!

Para dar uma pequena contribuição no sentido da designorantização ou desidiotização daqueles que caíram no "conto do vigário" da TV Bandeirantes sobre a tal de base naval nazista na Ilha da Rita, sugiro - aos interessados - darem uma olhada na dissertação de mestrado encontrável no seguinte link: http://univille.edu.br/community/mestradopcs/VirtualDisk.html/downloadDirect/525888 

 

Gentes, relendo essa "nota" agora, passados meses de sua postagem, continuo impressionado como a Bandeirantes ousou colocar em público uma fake new dessa envergadura, um excremento dessas dimensões. Para aqueles leitores que estejam incrédulos, remeto ao link https://noticias.band.uol.com.br/noticias/100000917485/ilha-guarda-segredos-de-alianca-entre-brasil-e-a-alemanha-nazista.html, ali poderão ver, por escrito, afirmações como: "O fechamento do Canal do Linguado foi em 1933 [!!!!] ...". Poderão ler que "em São Francisco do Sul o regime de Adolf Hitler realizou obras de aterro do Canal do Linguado para a construção de uma linha de trem e de uma estrada ...". Em outras passagens das matérias, se sugere que Hitler colocou Getúlio Vargas de joelho, obrigando-o a fazer as obras, aqui se diz, de forma expressa, que o próprio Hitler as realizou. Mas não foi só a estrada: "Além da linha de trem e da estrada, os nazistas também ergueram em São Francisco do Sul uma base militar para que navios e submarinos alemães recebessem combustível e armamento". Aqui vale a mesma coisa, passaram por cima de Vargas, e, simplesmente, "ergueram". Só fico imaginando que pensam os adoradores de Getúlio sobre isso, quando as próprias reportagens apresentaram o presidente brasileiro não só visitando as obras, mas inaugurando festivamente a base (na matéria do link acima, é reproduzida uma foto desse ato). Se ela realmente foi "erguida" pelos nazistas, este foi, com certeza, o maior papel de palhaço que Vargas representou, em toda a sua vida! [10/6/2018]